Em Outubro de 1974,
ano da revolução, comecei a leccionar como professora estagiária de Inglês e
Alemão, no então Liceu de Queluz. Com apenas 22 anos deparava-me com um cenário
de mudança em que tudo seria possível. O ensino, tal como o conhecera, iria
mudar. E estava nas nossas mãos fazê-lo. A escola tradicional, herdada do
séculos XVIII e XIX, as carteiras alinhadas frente ao professor, a escuta
passiva, o decorar sem saber para quê, o “autismo” a que éramos relegados, a
pressão que nos impedia de crescer, tudo iria mudar. Entusiasmada, mergulhava
nas novas pedagogias, descobria novos caminhos, experimentava abordagens
motivadoras que permitissem desenvolver a imaginação, a criatividade, a
responsabilidade. Porque o Teatro fazia já parte da minha vida, nele encontrei
técnicas que aplicava nas aulas, permitindo que os alunos sentissem a
necessidade de aprender e desenvolver o seu conhecimento das línguas para
melhor poderem participar. O facto de o poder fazer enquanto estagiária e, no
ano seguinte, como orientadora de estágio, foi marcante. Tinha tempo, tinha
condições, e um grupo de professores confiante e empenhado.
E foi durante esses
dois anos que cresceu em mim a vontade de me dedicar à aplicação de técnicas
teatrais e de jogo dramático no Ensino. Ao tempo, um grupo de professores
ingleses (English Teaching Theatre)
apresentava um espetáculo de curtos sketches
cómicos para o ensino do Inglês que funcionava como motivação para o ensino da
língua. Os resultados eram muito eficazes. Conversando com eles apercebi-me de que
este tipo de experiências eram já bastante recorrentes em vários países, com
resultados muito positivos.
Em Portugal, a
Fundação Calouste Gulbenkian, através do seu Centro de Investigação Pedagógica,
desenvolvia desde meados do século XX e com a participação de brilhantes
pedagogos, entre eles o Prof. Arquimedes da Silva Santos, estudos em torno da
psicologia da criança e da sua relação com as artes, que levaram aos princípios
orientadores da Educação pela Arte, curso ministrado no Conservatório Nacional.
Frequentei o curso, e em 1976 apresentei ao Ministério da Educação a proposta
de formação do Gabinete de Comunicação e Teatro, constituído por um grupo
multidisciplinar de professores que, para cada disciplina, desenvolvia um
conjunto de exercícios e jogos de aprendizagem, com base em técnicas teatrais e
jogo dramático. Para além de oficinas práticas tanto para professores como para
alunos, de carácter mais didático, existia um seminário abrangente com o
propósito de despertar e desenvolver o indivíduo em todas as suas
potencialidades, privilegiando a imaginação, a liberdade, o foco, o poder da
palavra, a co-criação através de várias formas artísticas. Este seminário
encerrava com uma grande improvisação pelos participantes, seguida de um espetáculo
apresentado pelos orientadores.
Projeto aceite
depois de muitas peripécias, deu-se início em 1977 ao núcleo base do gabinete:
apenas foram autorizadas formações para as disciplinas de Português e Inglês.
Com muita resiliência e empenho, e com resultados surpreendentes em turmas-piloto
que acompanhávamos, o projeto foi expandindo até que, em 1980, o Gabinete de
Comunicação e Teatro conheceu finalmente
o seu formato original. Não é este o momento de escrever sobre o impacto
e os resultados obtidos. Sim, foram excelentes, com turmas-piloto a
provarem-no, com o Conselho da Europa a não só validá-lo como a indicá-lo como
uma das experiências mais inovadoras e bem-sucedidas realizadas no âmbito
europeu. Experiência que foi replicada noutros países e… continuada. Em 1988 o
Gabinete de Comunicação foi considerado um “luxo” pedagógico que o Ministério
não podia continuar a apoiar. Em 1989 foi extinto, por minha vontade, já que
seria a única professora a continuar agregada ao Ministério da Educação, depois
de anos a tentar que os nossos relatórios e sucessos alcançados se vissem
minimamente refletidos nas várias reformas do ensino que, entretanto,
aconteceram.
Fui buscar a minha
experiência, em primeiro lugar porque só sei falar daquilo que realmente vivi,
e em segundo, e mais importante, para que possamos perceber que, desde o início
do século XX, pedagogos reconhecem a ineficácia de um sistema de ensino saído
da revolução industrial e pensado para uma determinada época. Sabiam eles e
sabemos nós que apenas um desenvolvimento global de todas as valências de um
ser humano podem contribuir para um saudável desenvolvimento da criança, e para
as aprendizagens que a sociedade lhe oferece. Sabiam eles e sabemos nós que
todos somos diferentes, que as padronizações se fazem por condicionantes
físicas, financeiras, culturais, sociais, políticas, mas que cada indivíduo se
pode demarcar dessas condicionantes se lhe for possível o acesso à sua
verdadeira identidade, livre de medos, de ansiedades, de constrangimentos, de
preconceitos. Livres interiormente, abertos a novos conhecimentos, responsáveis
e seguros, são esses os seres humanos que queremos ver crescer. Para isso a
Escola tem de mudar. E se os responsáveis, os que investem e acreditam num
ensino diferente não conseguem fazer-se ouvir, então a questão é política. O
Poder não quer sociedades felizes, responsáveis, livres? O Poder prefere criar
fantoches manipuláveis?
Ao escrever as
últimas linhas do parágrafo anterior, disse para mim própria: basta! Toda a
minha vida, o Poder, a vontade política, etc, foram os monstros sem rosto que
tive de enfrentar. Os rostos que me diziam “não é possível mudar”, eram os
rostos do medo, os rostos dos sem-rosto, dos que aceitam o que lhes parece
inevitável, porque são essas as “diretivas”. Os que me diziam “ainda não é
altura, é preciso tempo…” eram as crianças formatadas que ocupavam agora os
lugares pelos quais tinham sofrido nas cadeiras da escola.
Mas os tempos
mudaram. Mudaram muito e continuam a mudar a grande velocidade. Somos muitos os
que sabem que sim, é tempo. Não podemos continuar a lobotomia de seres
maravilhosos. Não podemos permitir que as nossas crianças a quem, na infância,
tantas vezes reconhecemos talentos e capacidades, sejam transformadas em mais
um número no mercado de trabalho. Quantas vezes se ouve dizer: “prometia tanto
em miúdo…”, “perdeu-se completamente, o que terá acontecido?”. E, se formos a
ver o que aconteceu, damos connosco a não compreender. Pois… Se até teve uma
vida tão boa… Mas houve a Escola pelo meio, não?
O Ensino pode ser o
grande demolidor ou o grande construtor. Sabemos como pode ser construtor. E
sabemos como pode ser demolidor. Se o Poder não quer, se a vontade política não
é essa, qual a solução? Há escolas onde novos conteúdos estão a ser
implementados, onde o desenvolvimento transpessoal e o ensino pelas artes têm a
primazia. Dizem pais e pedagogos que não serve para os exames, mas que correm o
risco. O ensino público servia o mercado de trabalho. Já não serve. A
imaginação, a responsabilidade, o entusiasmo, o propósito, o seguir o que mais
gostamos, o termos respeito por nós próprios, levou milhares a co-criarem o seu
próprio emprego. Assim surgem, a cada dia, novas perspectivas, propostas
diferentes. Não estarão muito melhor preparadas para esses desafios, as
crianças que frequentam agora as escolas alternativas que o Estado não
reconhece? E, acima de tudo, não serão mais felizes?
Enquanto nada é
feito pelos governantes, mudemos nós, agora. Pelo bem-estar de futuras
gerações. Por um mundo melhor.
Isabel Medina
05/01/2017
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